A Mulher com Olhos de Fogo

Nawal El Saadawi

Editora: Faro Editorial

Páginas: 160

Ano: 2019

Sinopse:

"Um dos livros mais francos e radicais sobre a vida feminina, de todas as origens, em todas as partes do mundo.” THE GUARDIAN Esta ficção é baseada no relato verdadeiro de uma mulher que espera sua execução em uma prisão no Egito. Sua história chega até a autora, que resolve conhecer Firdaus para entender o que levou aquela prisioneira a um ponto tão crítico de sua existência. “Deixe-me falar. Não me interrompa. Não tenho tempo para ouvir você”, começa Firdaus. E ela prossegue contando sobre como foi crescer na miséria, sua mutilação genital, ser violada por membros da família, casar ainda adolescente com um homem muito mais velho, ser espancada frequentemente, e ter de se prostituir... até que, num ato de rebeldia, reuniu coragem para matar um de seus agressores, levando-a à prisão. Esse relato é um implacável desafio a nossa sociedade. Fala de uma vida desprovida de escolhas, mas que em meio ao desespero encontra caminhos. E, por mais sombrio que isso possa parecer, sua narrativa nos convida a experimentar um pouco dessa liberdade encorajadora através das transformações internas de Firdaus. O que acontece com ela é o despertar feminista de uma mulher.

Ter a vida como um livro aberto. Talvez seja essa a ideia de A Mulher com Olhos de Fogo: mostrar a vida de Firdaus de maneira aberta, sem amarras, sem vendas. Ao mesmo tempo que faz ver, é também cortante como o fio da navalha, sufocante como estar debaixo d’água por tempo demais e, claro, violento como apenas o mundo humano o consegue ser.

Visceral. Talvez seja a melhor palavra para descrever a história que Firdaus está prestes a narrar para a psiquiatra que senta à sua frente na cela da prisão com apenas um propósito: ouvir. É o que ela faz, é o que fazemos. A voz de Firdaus sai das páginas e ressoa em nossos ouvidos como se estivéssemos também sentadas no chão duro e frio. A voz é tão antiga quanto a própria Terra e faz pensar em todas as vidas de mulheres que já se passaram sobre o globo.

“Deixe-me falar. Não me interrompa. Eu não tenho tempo para escutá-la. Eles virão me buscar às seis horas da tarde de hoje. Nem aqui nem em nenhum outro lugar deste mundo. Essa viagem rumo ao desconhecido, a um lugar onde ninguém neste mundo jamais esteve, me enche de orgulho.”

O motivo de Firdaus estar presa, aquele que logo de cara sabemos é este: ela assassinou um homem. Talvez antes nunca tenha ouvido falar de uma assassina, que de fato cometeu o crime, mas que era inocente, ou pelo menos, não como ela.

A história que Firdaus conta começa em seu princípio, na infância, com a fome e seus irmãos e irmãs minguando até a morte. Os dias são duros, brutos e ela não vê nada de si no homem que chama de pai ou na mulher que chama de mãe. Jura que ela foi trocada por outra, uma a qual ela não reconhece o brilho no olhar.

“Em certa ocasião ele me deu uma grande surra com seu sapato. Meu rosto e meu corpo ficaram inchados e cheios de contusões. Então eu fui embora de casa e procurei meu tio. Mas o meu tio me disse que todos os maridos batiam nas suas mulheres, e a esposa do meu tio ainda comentou que ela mesma apanhava do seu marido com frequência. Eu respondi que meu tio era um xeique respeitado, bem versado nos ensinamentos da religião, e que, portanto, não era possível que ele tivesse o hábito de bater na sua mulher. Ele retrucou que eram justamente os homens versados na sua religião que batiam nas esposas. Os preceitos da religião permitiam tal punição. Uma mulher virtuosa não devia se queixar do marido. O dever dela era a perfeita obediência.”

A partir daí, a vida mostra que pode sempre cobrar mais, tirar mais. Firdaus sofre mutilação genital, passa por abusos, privações até ir morar com seu tio após a morte de seus pais, onde sente que renasceu. Qualquer pouco que lhe é dado, ela sente como se fosse muito, como se o tratamento que lhe está sendo dispensado, fosse especial. Não que o tio represente de fato alguém livre de preconceitos, abusos ou opressão, mas o que temos é a visão da criança que sente o mundo a ser desbravado.

Na nova morada, uma escola. Palavras a rodeiam, uma sede pela leitura e pelo saber. Mas que se esvai com o retorno para casa após a conclusão, a faculdade não é uma opção, cara demais e Firdaus não tem dote. O casamento com um tio da esposa de seu tio é a saída para que ela não seja mais uma boca a alimentar.

“- … Viver é duro demais.
– Você deve ser mais dura que a vida, Firdaus. A vida é muito dura. As únicas pessoas que realmente vivem são as que conseguem ser mais duras que a vida.
– Mas você não é dura, Sharifa. Então como consegue viver?
– Eu sou dura, Firdaus, sou terrivelmente dura.
– Não. Você é gentil e delicada.
– Minha pele é delicada, mas o meu coração é cruel, e a minha mordida é fatal.
– Como uma cobra?
– Sim, exatamente como uma cobra. A vida é uma cobra. É a mais pura verdade, Firdaus. Se a cobra perceber que você não é uma cobra, vai morder você. E se a vida perceber que você não tem veneno, vai devorar você.”

A partir daí vemos o desenrolar de um casamento violento, opressor, machista, o que leva Firdaus à fuga. É apenas o início do que seria uma fuga que não cessa mais, ou apenas no dia em que ela é enclausurada na prisão. Nesse meio tempo, vemos os caminhos que a levaram à entrar e sair da prostituição mais de uma vez até o fato que marcaria o fim de sua vida: o assassinato de um homem.

A narrativa é, ao mesmo tempo, densa e fluida. É densa porque é difícil imaginar como Firdaus sobreviveu, não apenas aos abusos e violações de seu corpo, mas também de sua mente. E fluida porque ela lhe conta a história como se recontasse para si mesma, como se quisesse, uma última vez, olhar para os passos que a levaram à forca.

“Uma frase, uma pequena frase composta de quatro palavras, lançou uma intensa luz sobre a minha vida inteira e me fez enxergar como ela era realmente. O véu que cobria os meus olhos havia sido despedaçado. Eu estava abrindo os olhos pela primeira vez, vendo a minha vida sob uma nova perspectiva. Eu não era uma mulher digna de respeito. Era uma informação da qual eu não tinha tomado conhecimento antes. Foi bom ter ignorado esse fato por tanto tempo. Eu era capaz de comer bem, de dormir tranquila e profundamente. Será que existia algum modo de arrancar da minha mente essa nova informação?”

São esses passos que marcam seus pensamentos, que tomam vida em cada linha e mostram as marcas que a vida oprimida e subjugada lhe trouxeram. Não existe confiança, laços amigáveis ou amor entre homens e mulheres. Entre Firdaus e os homens. Eles não permitiram, não deram sequer uma chance, um respiro. Mantiveram a postura de superioridade por toda vida dela, e assim se mantiveram, se justificaram.

A leitura é, em partes (na verdade, quase toda ela), sufocante, o machismo exacerbado que pinga das páginas nos faz desejar se tratar de mera ficção, de um caso extremo. Mas sabemos que é, ainda (o livro foi escrito baseado num relato que a psiquiatra recebeu de uma prisioneira em 1974), realidade. É a realidade que permeia a vida de incontáveis mulheres, incontáveis Firdaus.

“Eu acabei percebendo que uma mulher trabalhadora tem mais medo de perder o emprego do que uma prostituta tem de perder a vida. Uma funcionária morre de medo de perder o emprego e ter que virar uma prostituta, porque não entende que a vida de uma prostituta é na verdade melhor que a dela. E assim, com sua vida, sua saúde, seu corpo e sua mente ela paga o preço por seus medos ilusórios. Ela paga um preço altíssimo para receber coisas de valor irrisório. Eu havia entendido que todas nós éramos prostitutas que se vendiam por preços variados, e que uma prostituta cara era melhor que uma prostituta barata.”

Ainda assim a autora conseguiu dar sintonia e sincronia no ciclo narrativo. Dividia em três partes, a primeira e a última, são a visão da psiquiatra que visita a Prisão de Qanatir, a segunda, é voz de Firdaus. Nesta, em especial, temos momentos cíclicos que marcam a vida da mulher-personagem. São detalhes, que mostram a aspereza, a beleza, rudeza, feiura e sutileza da vida. É a garota que se apaixona por aqueles que lhe demonstram os mais singelos toques de cuidado, atenção. É a mulher que sente que o amor é algo indizível, que não precisa de formas ou palavras para existir, que, simplesmente, o é.

Mais do que dizer certos e errados, a história questiona. Firdaus questiona. Por que esse ou aquele é o papel da mulher? E sabemos que quem a levou ao ato que a condenaria à morte não fora os atos isolados de um homem. Foram todos os atos de todos os homens que cruzaram seu caminho. Eles a muniram, eles desferiram o golpe, o sangue corre nas mãos de cada um deles, jamais nas dela.

“Quando as ruas se tornam a sua vida, você não anseia mais por nada, não tem mais esperanças. Mas do amor eu tinha expectativas. Com o amor eu comecei a imaginar que havia me tornado um ser humano.”

A Mulher com Olhos de Fogo: o despertar feminista é um livro necessário, dolorido, angustiante. Mas, repito, necessário. As dores de Firdaus são as nossas dores. Sua luta é a nossa. Seus olhos que flamejam fogo dizem ainda mais que suas palavras, mostram a chama que não devemos deixar que se apague como fizeram com Firdaus.

“Eu sei porque eles me temem tanto. Eu fui a única mulher que arrancou a máscara, e eu expus a face da feia realidade deles. Eles me condenaram à morte não porque matei um homem – milhares de pessoas são mortas todos os dias -, mas porque eles têm medo de me deixar viver.”

Publicado em: 23/04/2019

5 Comentários

  1. Marina Mafra23 abr, 2019Responder

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