Sinopse:
Quando Sabrina Boggs tropeça em uma misteriosa coleção de bolinhas de gude que pertencia ao seu pai, percebe que não sabe nada sobre o homem com quem cresceu. É uma coleção valiosa e incomum – incomum se ela pensar no homem que sempre conheceu. No entanto, há algo real lá dentro, muito verdadeiro sobre seu pai, ou sobre a criança que ele fora. Sabrina só tem vinte e quatro horas para descobrir os segredos do homem que ela pensava conhecer. Um dia para exumar memórias, histórias e pessoas que não sabia existirem. Um dia que a mudará para sempre. Fazendo uma busca pelas memórias de seu pai, Sabrina persegue uma busca de identidade; os segredos que ela trará à tona irão mudar tudo o que dava por certo em sua vida. Mas se seu pai não é o homem que ela achou que fosse, quem é a própria Sabrina?
“Quando se trata de lembranças, há três categorias: coisas que quero esquecer, coisas que não consigo esquecer e coisas que esqueci que havia esquecido, até me lembrar delas.”
(Página 7)
Existem histórias que emocionam desde a primeira página, nos arrancando sorrisos, às vezes lágrimas, e sempre trazem algo bacana que a gente aprende e leva pra vida.
Há, também, histórias que, além de trazer toda essa gama de emoção e sentimentos, fazem remexer nossas memórias e nos questionarmos sobre quem realmente somos, de onde viemos, para aonde vamos. Esse tipo de reflexão é uma das coisas mais incríveis que um bom livro pode proporcionar.
Cecelia Ahern tem o dom de fazer o leitor se enxergar em diversas situações vividas por suas personagens, resgatando lembranças de muitos momentos, desde os mais felizes – perpassando pelas escolhas que fizemos ao longo da vida – até as circunstâncias mais tristes. É por isso que – e como diria um amigo meu – “amo forte” essa autora.
“Tenho uma queda para me lembrar de coisas que as pessoas esquecem e agora sei de algo importante sobre meu pai, que ele guardou, mas esqueceu. As coisas que queremos esquecer, as coisas que não conseguimos esquecer, as coisas que esquecemos, até nos lembrarmos. Há uma nova categoria. Todos nós temos coisas que jamais queremos esquecer. Todos nós precisamos de alguém que se lembre delas, só para garantir.”
(Página 56)
Aos cinco anos de idade, Fergus Boggs perdeu o pai e a família precisou mudar-se da Escócia – sua terra natal – para a Irlanda. Adaptar-se foi difícil, apesar de já ter passado alguns verões visitando familiares. Língua e costumes diferentes, a nova rotina dentro de casa, a escola. Passou a estudar num lugar rigoroso, onde era punido por não entender o idioma e no qual os ensinamentos de seu pai eram desconstruídos. Com a mãe triste pelas circunstâncias, o garoto guardava para si aquele pedaço doloroso de sua nova vida.
Tudo muda quando um jovem padre lhe presenteia com algumas bolinhas de gude. A estratégia utilizada para jogá-las ajudaria o garoto a abstrair um pouco esses momentos difíceis. Para Fergus, foi um tipo de salvação e elas passariam a ter um significado muito maior ao longo de sua jornada, especialmente anos mais tarde, quando sua memória é arrancada de forma inesperada.
“A parte de mim que ela conhece é um homem que eu forjei ao longo do tempo. Ele é bom com as pessoas, é paciente, educado, interessado. (…) É melhor ser ele, ele facilita a vida pra ele e pra mim. Mas ele não sou eu.”
(Página 124)
Sabrina Boggs está numa fase confortável de sua vida. Casamento, filhos e realização profissional conquistados. Porém, sem nenhum projeto ou sonho à vista, a zona de conforto tem trazido conflitos pessoais, interferindo na relação com o marido, no trabalho e na maneira como enxerga a si mesma. Além disso, seu pai está internado numa casa de repouso tentando se recuperar de uma lesão cerebral.
É tentando achar uma maneira de ajuda-lo nessa recuperação que Sabrina descobre entre as coisas dele uma coleção de bolinhas de gude, jamais vista por ela. Com tudo muito bem catalogado, percebe que uma parte está faltando. Mas, de onde vêm essas bolinhas? Por que o pai nunca falou delas? A mãe sabe de sua existência? Quem retirou da coleção peças tão valiosas?
Na busca por respostas, Sabrina acaba descobrindo bem mais do que imaginava e passa a questionar sobre sua própria trajetória. O pai escondeu uma parte tão importante e marcante de sua existência que ela não consegue calcular o quanto a omissão dele impactou em sua vida. Por que ela é esse tipo de pessoa, fechada em seu próprio mundo, reclusa? Por que a família do pai é tão distante? O que ela realmente conhece sobre o Fergus?
“As pessoas não sabem o que causam aos outros quando fazem coisas que não deveriam. Mágoas criam raízes que se espalham, vão se alastrando, sorrateiramente, por baixo da superfície, tocando outras partes da vida dos que eles magoaram. Nunca é um erro, nunca é um momento, torna-se uma série de momentos, e cada um deles origina raízes que também crescem em direções diferentes. E, com o passar do tempo, isso se transforma numa velha árvore retorcida, estrangulando a si mesma, amarrando-se em nós.”
(Página 133)
A narração em primeira pessoa é alternada entre o ponto de vista de pai e filha. As memórias fragmentadas de um homem que teve suas lembranças roubadas por um AVC e a busca de uma mulher, não apenas pela verdadeira história de vida do pai – aquela parte que ele manteve em segredo por tanto tempo – mas, também, por sua própria identidade.
Toda a trama é conduzida de maneira bastante envolvente e é como se o leitor fizesse parte de tudo, a narrativa atraindo-o como um grande ímã para dentro da história, levando-o a dialogar com as personagens, buscar respostas junto com a Sabrina e entender esse homem por trás do Fergus pai.
Bolinhas de gude podem não parecer relevantes, mas foram para o protagonista símbolo de toda uma vida e a autora conduziu isso lindamente. As referências a determinado tipo de jogo casou perfeitamente com as situações vividas pelo Fergus e, mais tarde, tornaram-se o gatilho para que ele tivesse um vislumbre – mesmo que pequeno – de quem ele foi.
Mais do que a investigação da Sabrina sobre os segredos guardados pelo pai, essa é uma história sobre resgatar memórias e conhecer toda a trajetória de uma vida marcada por tudo aquilo que nos faz humanos e nos movimenta: as alegrias, as dores, as conquistas, as dificuldades, as perdas, as mancadas, os sonhos, os amores.
“Talvez seja verdade que a gente nunca se conhece até que outra pessoa verdadeiramente nos conheça. A missão de hoje deixou de ser procurar as bolinhas desaparecidas e passou a ser uma busca para encontrar o homem que as possuía, e eu não sabia que isso acabaria significando procurar por mim mesma.”
(Página 200)
Algo que eu não poderia deixar de citar é a sensibilidade da autora ao narrar a infância do Fergus, sua relação tão próxima com o irmão mais velho, a rotina bagunçada da família Boggs/Doyle e, claro, as situações envolvendo as bolinhas de gude. Fiquei me perguntando o tempo todo sobre a inspiração por trás da trama.
A interação entre os irmãos trouxe lembranças doces da minha infância e foi uma delícia me perder nelas. Deu vontade de voltar no tempo, para o quintal grande que tinha lá em casa e “jogar gude” com os meus. Sentir-se nostálgica nunca foi tão bom e é especialmente por esse motivo que indico esse livro com todo coração.