Sinopse:
Margô mora em uma casa caindo aos pedaços, num bairro abandonado, com sua mãe que a ignora há dois anos. Ela se sente invisível, até que a amizade com Judah, seu vizinho cadeirante, muda suas perspectivas e a desperta. Quando uma criança de sete anos desaparece em seu bairro, Margô resolve investigar o caso com a ajuda de Judah e o que ela descobre a transforma por completo. Agora, determinada a encontrar o mal, caçar todos os molestadores de crianças, torna-se a razão de sua vida. Com o risco de perder tudo, inclusive sua própria alma, Margô embarca num caminho sem volta... E o que isso diz a ela sobre si mesma? Por que decidiu fazer justiça? O que a tornou tão invisível?
Poucas vezes me faltaram palavras para falar sobre um livro que eu acabei de ler, mas esse aqui me deixou realmente sem saber o que dizer. Ou o que começar a dizer. Tudo é muito avassalador, imprevisível e surpreendente. Esse é um daqueles livros perturbadores que ficam na nossa mente por um tempo. Essa é uma história para ser sentida. Cada leitor provavelmente vai ter percepções muito próprias durante e ao final da leitura, sobre os personagens e suas complexidades. Acho que o livro pode render boas discussões.
De antemão, alerto que se trata de uma leitura intensa, com cenas de violência bastante descritivas, que podem ser muito incômodas e provocar gatilhos em alguns leitores. É um livro para quem já está habituado a ler romances dark e livros mais densos e pesados.
Margô é uma sobrevivente. Ela e a mãe vivem num bairro pobre e marginalizado chamado Bone, na casa que devora, como ela intitula, uma construção caindo aos pedaços, em que as tábuas do piso rangem, as vidraças das janelas, quando existem, estremecem com o som do vento e os cômodos parecem amaldiçoados. Sua mãe sofre de transtornos mentais e a ignora desde que perdeu o emprego e passou a se prostituir. Margô também é invisível. Ela tem problemas de autoestima e desconta todas as suas frustrações pela solidão e negligência em pacotes de pão de mel, comprados com o dinheiro que consegue furtar da mãe. Falta comida, cuidado e atenção.
“A risada da minha mãe sumiu primeiro, depois os sorrisos, que eram tão largos que mostravam mais gengiva do que dentes. A última coisa a desaparecer foram seus olhos brilhantemente expressivos. Eles pararam de enxergar e então passavam batido nas coisas. Fitavam paredes, armários e pisos. Eles olhavam para tudo, menos para mim.”
A invisibilidade dela é posta a prova quando ela é notada por seu vizinho Judah. Ele é um jovem cadeirante sempre bem humorado, que enxerga a vida de um jeito esperançoso e, assim como ela, anseia sair daquele ambiente sórdido e limitante.
Quando Nevaeh, uma garotinha de sete anos que está sempre indo e vindo a Bone desaparece, Margô decide investigar. Ela sabe que a polícia não se importa com as pessoas daquele bairro e, por isso não haverá grandes esforços para solucionar o caso. O desfecho mexe completamente com Margô, a injustiça e a impunidade lhe inquietam. Esse é um dos primeiros gatilhos para a sua transformação.
Ao longo das páginas, acompanhamos as fases da vida de Margô, dos treze aos vinte e poucos. De garota introvertida e desesperançosa até uma vingadora implacável. Sua invisibilidade colocada sob ângulos diferentes. A evolução da protagonista é um dos pontos mais altos da história, tudo é tão bem construído e cheio de nuances. Ela é complexa, cheia de camadas e seu passado é extremamente determinante. Não é possível simplesmente sair de Bone, deixar a casa que devora, sem levar alguma parte deles consigo.
É bem fácil dividir a história em, pelo menos, duas partes. Eu ainda consigo enxergar três. Há grandes pontos de virada na vida de Margô que mudam completamente o rumo da trama principal. Inclusive, a última reviravolta é a mais inesperada e perturbadora.
“A tristeza é um sentimento em que você pode confiar. É mais forte que todos os outros. Ela faz com que a felicidade pareça instável e indigna de confiança. Ela permeia tudo, dura mais e substitui os bons sentimentos com uma facilidade tão eloquente que você nem sente a mudança, até que de repente, você está enrolado em suas correntes.”
“Até o para-brisa rachar, eu não tinha percebido que estava guardando tamanho rancor. No momento em que o martelo atingiu o vidro, foi como se tudo saísse de dentro de mim de uma só vez. Raiva, muita raiva. Decido que deve haver mais ressentimentos escondidos em mim. Eu me pergunto como seria me vingar das pessoas.”
A vida de Margô é narrada por ela mesma. Com uma honestidade às vezes cruel. Foram vários os momentos em que precisei parar e respirar um pouco para começar o capítulo seguinte. Achei incrível como capítulos curtos puderam ser tão potentes, mesmo os que não narraram cenas de ação. As metáforas e analogias também muito boas. E tudo isso é culpa de Tarryn Fisher. Eu não conhecia a autora me surpreendi muito com a profundidade do texto.
“Evolui de uma menina cor-de-rosa e gorda, que mantinha os olhos firmemente colados na calçada, para uma mulher matadora com músculos saltados, que encara todos nos olhos, procurando pecados.”
A questão central de toda a trama é o dilema entre vingança e justiça. Não no sentido da Lei, mas na conjuntura moral em que tudo isso flutua. É sobre uma empatia que desperta instintos primitivos. Uma retaliação que se traveste de justiça. Olho por olho, surra por surra, como repete Margô ao longo da trama. Até que ponto a nossa empatia e sensibilidade com a dor do outro nos transforma em pessoas sedentas por uma reparação vingativa e como isso pode nos destruir? Para mim, essa foi a grande pergunta que a leitura me provocou.
“Querido, eu sou louca.”
Esse é um livro para estômagos fortes e corações sensíveis. Não se trata de uma história de amor ou de esperança. É uma vingança poética, segundo justifica a autora. O saldo final é sensacional.
Finalmente, recomendo não acreditar na sinopse. O texto não é eficiente e faz parecer que o enredo inteiro gira em torno de um acontecimento do início do livro que, embora tenha força para alavancar a história, representa apenas uma das tramas. A história de Margô é bem maior e cheia de reviravoltas. O ponto negativo que destaco na leitura é esse: a sinopse não faz jus a história.
Recomendo com ressalvas, mas tenho certeza de que será impossível não se perturbar com essa história densa e de reviravoltas tão intensas.
Tarryn Fisher é aquela autora que sempre esteve nas minhas listas de leitura, mas eu nunca cheguei a ler nenhum livro. A cada página lida, eu me perguntei o porquê de tê-la deixado invisível por tanto tempo.